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Escreva para abismos

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Texto de Jaqueline Gomes de Jesus.

Foi de um assento de avião que surgiram estas palavras, no retorno de mais um compromisso Brasil afora.

Não tenho me decepcionado com as constantes viagens, sempre exigentes para com a minha disposição física e mental, mesmo quando seus resultados são menores que o esperado – ou mais que inesperados.

Isso me lembra da vez em que participei de um concurso docente, e durante a entrevista fui indagada sobre que autores eu leria para aprofundar meu entendimento sobre os desafios do mundo de hoje, e ao contrário do esperado, respondi: “blogs”.

Afirmação estranha para o mundo acadêmico, sustentado e rodeado por revistas científicas, anais e livros, ela estava em sintonia com um texto que outrora escrevi, chamado “Por Que Ler @s Blogueir@s”, no qual me posiciono acerca da centralidade desses atores sociais, que tão intensamente têm refletido sobre a contemporaneidade, seus dilemas e possibilidades, e têm sido protagonistas do pensamento, no seu maior palco hoje, a virtualidade.

Não vou me aprofundar na análise dos blogueiros como personagens, o que já fiz no artigo citado. O que pretendo defender aqui é que, na conjuntura em que nos encontramos — da Sociedade da Informação, na Era do Conhecimento —, os melhores cronistas do cotidiano, produzindo dia-a-dia em blogs, microblogs, redes sociais e sites, para livre acesso ao público, serão aqueles que estiverem cientes que estão escrevendo para abismos.

Os leitores de hoje são abismos, abertos a qualquer dado que lhes seja lançado. Na globalização, o maior desafio não é ter acesso a informação, é saber selecioná-la, e transformar o que for útil em conhecimento. Desafio para o qual não há resposta pronta. Tem se tornado cômodo acatar tudo como literal, e quando se critica algo, muitas vezes falta fundamentação teórica para o questionamento lançado — todo mundo tem opinião, para o bem e para o mal, se posso usar esses termos para simplificar o que penso a respeito.

Foto de Digital Democracy no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Foto de Digital Democracy no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Nesse sentido, e a contrário do que tantos propagandeiam, o pior intento de quem escreve para as pessoas da contemporaneidade deve ser o de melhorá-las, e a sociedade, quiçá o mundo, mesmo que implicitamente. Isso é inventar novos ideais, reafirmando a antiga e duradoura negação da humanidade no que ela tem de espontâneo e complexo, a sua expressão mais viva.

O escritor e a escritora de hoje não são pregadores, apesar de haver muitos deles (estes vivem e falam para outros tempos, passadas certezas ainda constantes nos corações e mentes de tantos), na obsessiva busca de verdades. Mas não seria isso próprio do humano?

A única verdade é aquela que se vive; aquela que depende da palavra não passa de promessa, ilusão ou lembrança do que já se foi. Entretanto, não é a memória de nossas vidas uma ficção que sustenta o que chamamos de realidade? Uma história que contamos para nosso próprio entretenimento (em todos os sentidos da palavra), seja no formato de drama, comédia ou tragédia?

Qualquer cronista de tudo isso que está aí, querendo ser minimamente apreciado(a) pelas gentes de hoje, tem de ser útil, e não poderá sê-lo copiando o estilo seco dos jornais e tampouco o didático da televisão.

Paradoxalmente ou não, cada um dos seus leitores, mesmo vivenciando dilemas diferentes e específicos, em diferentes localidades do globo, faz parte do grande e complexo processo da globalização que acultura a todos.

Mas então, o que eu redijo não pode ser também uma mistificação?

Em verdade, nós que escrevemos somos, voluntariamente, criadores de ilusões, cônscios ou não disso.

A diferença está em você, leitor(a), a quem cabe por direito, e unicamente a você, avaliar o que pode ou não preencher o vazio que lhe assoma, como abismos que ambos somos, em meio à floresta da informação — vala que talvez nunca seja aterrada; ao contrário, siga escavando a terra ao longo do tempo e das intempéries.

É para seres insaciáveis que escrevemos, tão ávidos por outros saberes e viveres quanto nós.

—–

Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília, escreve no blog Jaqueline J.

Autoras Convidadas

Somos várias, com diferentes experiências de vida. A gente continua essa história do Feminismo nas ruas e na rede.

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